Muito antes de dominarem a internet e os corações dos humanos modernos, os gatos já eram objetos de devoção — literalmente. Novas pesquisas indicam que a presença dos felinos domésticos na Europa não se deu apenas por razões práticas, como o combate a roedores, mas também por influência direta da religião e da cultura de civilizações antigas.
Dois estudos recentes, conduzidos por pesquisadores da Itália e do Reino Unido, reforçam a ideia de que os gatos domesticados vindos do Egito e da Tunísia chegaram ao continente europeu em múltiplas ondas migratórias — e com apoio do imaginário religioso.
Gatos além dos celeiros
Durante muito tempo, acreditou-se que os gatos domesticados chegaram à Europa no período Neolítico, levados por agricultores do Oriente Próximo (região que inclui países como Egito, Turquia e Iraque) para proteger os grãos armazenados dos roedores. Uma hipótese lógica, mas agora colocada em xeque.
As duas pesquisas — uma da Universidade de Roma Tor Vergata, com apoio de 42 instituições, e outra da Universidade de Exeter, no Reino Unido — usaram métodos modernos para analisar ossos, restos mortais e amostras de DNA de felinos encontrados em sítios arqueológicos europeus e africanos. Ao todo, foram estudadas mais de 2.400 amostras de 206 locais diferentes.
As análises revelaram que os gatos domésticos norte-africanos chegaram à Europa bem mais tarde do que se imaginava — milênios após o Neolítico. E mais: evidências sugerem que, nessa época mais antiga, os humanos nem sempre tinham uma relação de parceria com os gatos. Em alguns casos, eles eram até caçados.
Fé, mitologia e... gatos
A reviravolta na narrativa vem quando os pesquisadores observam um fator até então pouco explorado: a importância simbólica dos gatos em diferentes tradições religiosas.
No Egito antigo, os felinos eram reverenciados, especialmente em associação à deusa Bastet, que representava proteção, fertilidade e o lar. Esse fascínio egípcio influenciou outros povos, como os fenícios, os gregos e, mais tarde, os romanos, que passaram a ver os gatos como símbolo das deusas Ártemis (grega) e Diana (romana), ambas associadas à caça e à natureza.
Na mitologia nórdica, os gatos também ganharam protagonismo ao lado da deusa Freyja, ligada ao amor, à beleza, à fertilidade e à guerra. Com isso, os felinos ganharam um papel quase espiritual, cruzando fronteiras não só físicas, mas também simbólicas.
Do altar à fogueira
O prestígio dos gatos continuou na Europa cristã primitiva, onde eram bem-vindos em mosteiros e comunidades religiosas. Um dos estudos aponta que essas instituições — espalhadas por diversas partes da Europa — funcionaram como verdadeiras redes de difusão dos felinos.
Mas nem tudo foi adoração. A partir do século XII, mudanças teológicas começaram a associar os gatos a forças do mal. O animal, antes visto como símbolo de proteção e mistério divino, passou a ser ligado à heresia e bruxaria. Essa virada sombria na percepção pública fez com que os gatos fossem perseguidos em várias partes da Europa, especialmente durante a Inquisição, quando sua associação com as mulheres — já perseguidas como bruxas — se tornou um estigma.
História com muitas vidas
Os novos estudos ajudam a recontar a trajetória dos gatos na história humana, revelando que a domesticação felina foi moldada não só por necessidades práticas, mas por crenças, mitos e emoções.
Hoje, mesmo que não ocupem mais altares ou sejam ligados a rituais sagrados, os gatos continuam a exercer um certo encantamento sobre os humanos — agora com ajuda de memes, vídeos virais e ronronadas.
E, ao que tudo indica, o fascínio é tão antigo quanto duradouro.
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