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Hora Maconde: Algumas Provocações


Hora Maconde, de Marcelo Panguana, insere-se no género da narrativa histórica e decorre numa companhia militar em Tambara, um cenário que simboliza a tensão entre o domínio colonial e a resistência moçambicana. A escolha não é arbitrária: como outras regiões do país, Tambara foi palco de confrontos diretos e indiretos entre o exército português e os guerrilheiros da Frelimo.

Ao narrar um dos períodos mais marcantes da história de Moçambique — a colonização portuguesa e a luta de libertação —, o livro ultrapassa o relato histórico convencional. Panguana oferece uma reflexão profunda sobre os impactos psicológicos da guerra nos soldados, explorando não apenas a violência física, mas também a emocional.

A guerra como dissolução da identidade

A narrativa centra-se na experiência dos soldados, afastando-se dos grandes feitos militares para mergulhar nas suas angústias, medos, saudades e no desejo ambíguo de lutar e fugir. A ocupação portuguesa é exposta como um sistema que impõe dominação política, mas também gera divisões internas, levando muitos soldados a questionarem o propósito do conflito.

Esse esgotamento moral do colonialismo é um dos pontos centrais do romance. A guerra não é apresentada como heroica ou gloriosa, mas como um processo que dissolve a identidade dos envolvidos. Os soldados oscilam entre a brutalidade necessária para sobreviver, a nostalgia da vida deixada para trás e o sonho de um futuro incerto — numa linha que dialoga com Paul Fussell em The Great War and Modern Memory (1975).

A violência que ultrapassa o campo de batalha

O ambiente retratado é de desconfiança mútua, em que o inimigo nem sempre está do outro lado. Os próprios companheiros de guerra tornam-se fontes de medo, refletindo a instabilidade emocional causada pela iminência constante da morte.

No entanto, mesmo nesse cenário brutal, Panguana não abandona os traços da humanidade. O amor e a saudade emergem como âncoras emocionais: a lembrança da mulher amada ou da vida passada funciona como refúgio e resistência. Aqui, aproxima-se da visão de Svetlana Alexievich em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985), onde as emoções são tão importantes quanto os eventos militares.

A verdadeira luta: contra o esquecimento

Em Hora Maconde, a maior luta não é contra o inimigo visível, mas contra o esquecimento, a desumanização e o absurdo da guerra. Muitos soldados não acreditam na legitimidade do conflito e veem-se como instrumentos descartáveis de um império decadente.

Esse desejo de fuga — física e emocional — atravessa o romance. Sobreviver não é apenas escapar das balas, mas preservar a sanidade e a própria humanidade. Lembra-nos Erich Maria Remarque em Nada de Novo no Front (2023), ao apresentar soldados como vítimas de um sistema que os consumiu sem escolha.

Uma narrativa moçambicana, sem maniqueísmos

Marcelo Panguana foge dos discursos binários e dos heróis planos. A sua narrativa é simultaneamente lírica e brutal, reflexiva e implacável. Hora Maconde não é apenas um romance sobre a guerra: é um estudo sobre a condição humana diante da violência, da perda, da esperança e da incerteza.

A obra insere-se na tradição das grandes narrativas de guerra, mas com um olhar profundamente nacional — moçambicano. Ao mesclar o horror com a delicadeza do amor e da memória, o autor documenta um momento histórico crucial e, mais do que isso, interroga os efeitos duradouros da colonização na alma dos que a viveram.

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